12 de mar. de 2017

O Quebra Nozes

                                     O Quebra Nozes


Há passeio que não é um passeio qualquer; nos faz acreditar num mundo solidário, estrelado, “ de encontros, apesar de tantos desencontros”
Tateando um sonho fui ao Teatro Alfa assistir o espetáculo Quebra Nozes. Estava sozinha, com o tempo todo meu. Entro em um cenário estonteante, na apresentação de uma das melhores Companhias contemporâneas do país, a ‘Cisne Negro CIA de Dança”, que “acredita que a cultura é uma ferramenta de transformação social, alimento de esperança e sonhos de muitas pessoas. Tem participação de Projetos sociais em São Paulo e interior do Estado. Vem realizando o Projeto DANÇA NOS HOSPITAIS, humanizando o ambiente hospitalar, com arte, cultura e beleza, com importantes resultados de sensibilização e esperança”, entre outros. A Companhia viaja pelo Brasil e pelo mundo distante, com paixão e profissionalismo, vibrando a cada apresentação, como se fosse a primeira, ou a última.
Bailarinos, bailarinas brasileiras e internacionais tecem um espetáculo que nos enlaça na harmonia, beleza, arte e lirismo.
Fora dos palcos, no Saguão do Teatro, acontecia uma hora antes do espetáculo, a Cantada de Natal” com apresentação de corais convidados. No meu horário tive o prazer de ouvir o Coral Mix, tendo como maestrina Emily de Souza. Um Projeto Social da Água Funda com “crianças” de todas as idades. Também músicos profissionais engrossam as vozes jovens. Os participantes cantavam com vontade, dançavam sem receio de uma plateia que viera para assistir o “Quebra Nozes”. Eles se sentiram em casa e deram seu recado num canto de amor pelo projeto; pela vida.
A Emily, pelo seu gingado e entusiasmo, me lembrou a protagonista do filme “ Mudança de Hábito”, Whoopi Goldberg, como Delores Van Cartier. Era gostoso enxergar o seu sorriso, sua dança, e, o povo sorria junto, acompanhando o ritmo da emoção das músicas natalinas e populares. Percebi que tinha uma voz diferenciada; então ela me diz que seu timbre é soprano lírico dramático. Uma senhora, de cabelos prateados a acompanhava ao teclado. Tem uma banda. Fiquei imaginando a vibração desta mulher no palco. O show está garantido. Que trabalho social encantador” O olho d’água da esperança”.
De repente surge para abraçá-la a senhora Hulda Bittencourt, nada menos que a Diretora Artística da CIA Cisne Negro. Dois Projetos de Cultura que se abraçam e se entrelaçam na arte, independente do status social, dos cantos que encantam. E aqui, abro um parênteses: Hulda me conta que foi parceira de nossa querida Yola Guimarães, eterna professora, bailarina bauruense; Diretora do Grupo Imagem e Balé Yola Guimarães. A estreia deste espetáculo, O Quebra Nozes foi uma coprodução do Balé Yola Guimarães, com o Cisne Negro, em BAURU. Fiquei emocionada por tal revelação, querida Yola.
As crianças dão pulinhos de alegria quando d. Hulda as convida para entrarem na escola de balé da Companhia. Periferia e os Jardins trilhando pela mesma ponte sem preconceitos.
Simpatia e humildade perfumam o ar daquele espaço.
E assim surge a crônica. Num olhar que se interessa, pergunta, busca o sentido mais profundo dos fatos. Não apenas se assiste, mas se descortina sonhos e paixões na alma daquela gente.
Um espetáculo, pode não ser, só, um mero espetáculo.
Olynda Bassan
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11 de mar. de 2017

Mãe sementeira

                          








                  Mãe Sementeira


 No subúrbio da cidade a mãe se levanta junto com o Sol que doura o mundo, e dele suga a energia para pisar o seu chão duro.  Em sonho, areia fofa e morna.
     Na folhinha pendurada na parede descascada da cozinha, com sua velha caneta, os dias são riscados um a um. Seria mais um dia, ou menos um?   Distraída da vida, com a xícara de café e a fatia de queijo. a mulher olha pela janela. Nos olhos, a chuva mansa da saudade, escorre em oração. A mãe fixa o infinito como se não houvesse nada além dela.  Cristalizado em seu olhar está o dourado da medalha reluzente sobre peito do filho. No amor gerado no primeiro útero, a mãe enxerga o invisível e espera...espera...
    Em suas  idas e infindas vindas ao portão da casa, a mãe assola a terra, pisoteia  a grama como se fosse uvas no preparo do vinho festivo, celebrando  a partida da ausência, que a contorcia em prantos.
    No sorriso da alma, a mãe planta, semeia flores; decora o caminho.
           Hoje, as flores perfumam a prece.
A mãe inicia um  outro caminho em direção à Catedral, de sacristia com móveis escuros guardando as vestes sagradas. Ela cuida e enxerga em cada detalhe um símbolo da Liturgia do Amor.  Acaricia o tecido da manga, como se a sentisse entrelaçada num abraço de memórias e reencontro. Abre uma portinhola, vislumbra o ouro e se imagina bebendo o vinho da alegria, na taça celebrante da vida.  A presença na ausência do olhar a faz rodopiar com os braços abertos, indagando no eterno monólogo ‘Qual o chão que o recebeu, combatente valente?  Não me consola a narrativa do Governo me querendo convencer que você, meu filho, caiu no palco da batalha como herói, defendendo a Pátria. Meu Eduardo conheceu o caos, o horror da guerra da pior maneira. Tão, tão jovem partiu  na ilusão da propaganda política, na euforia, como se o seu fusível fosse o controle do seu Playstation, num jogo de” war games”. Sentindo-se herói desligaria a televisão, tomaria um suco e me encontraria no corredor  lhe dizendo ‘ filho, já é tarde, amanhã tem aula.
A realidade nua e crua desfez a festa da vitória, no olhar opaco e melancólico daquele capitão com um pacote no braço e uma medalha nas mãos. Não era um faz de contas.
Pelo caminho das flores ela foi tecendo novas tramas de uma vida não experimentada,  do  luto que não sabia viver.
 Seu café da manhã contemplando o nascer do Sol não mais se reveste da dúvida, mas da certeza de que estará só no hoje, e no amanhã.
 Não desmanchou o seu quarto; ainda sente o cheiro nas roupas. Não do perfume que usava. Acho que era “Animale”, mas a essência do corpo, da alma, da memória de quem foi.
  Aquela mulher, hoje, já clareia a cor dos seus vestidos, coloca cor na palidez do  rosto, no cinza da olheira que a dor tinge. Cabelos  alinhados, passos rápidos, entra e  sai do quarto do Eduardo por motivos banais. Se arvora neste pedaço sagrado da casa, que é a sua Catedral, onde se sente forte e plena diante dos pilares desafiantes e desafiados.

                                            Olynda Bassan


1 de mar. de 2017

Um homem e um Carnaval



                                                        

                         Um Homem e um Carnaval!

São quatro horas da madrugada desta quarta-feira de Cinzas, primeiro de março de 2017. Inspirado, após passar o período momesco recluso em meus estudos habituais, resolvi pôr em prática o que aprendi com esses dias de quase absoluto silêncio, descobrindo a outra face da vida, onde nem sempre entendemos ou sabemos lidar.
Pensei bastante na imensidão de pessoas que não puderam sequer sorrir. Os pacientes terminais, abandonados nos leitos mal tratados dos hospitais públicos, carentes de homens e de almas. Apenas quem conviveu ou convive com esse cenário desolador, pode maturar melhor sua concepção de vida e de morte, essa finitude parcial que quase incompreendemos fora da fé.
Meu carnaval me pôs em um silêncio confortável e por isso resolvi aprender mais com os erros que cometi no passado e nos que poderão encontrar minhas fraquezas, doravante. Esforçar-me-ei para que não me encontrem. Preciso melhorar para entender ainda mais a vida e a morte, não como coisas banais, passageiras, que não possuem em si uma barulhenta explicação, um extraordinário convencimento, mas como coisas necessárias e pertinentes à própria evolução da alma humana.
Gosto demais de estudar a história de Deus e do homem. Às vezes procuro e acho atalhos que me fazem atravessar com melhor entendimento, ensinamentos bíblicos, feitos por homens inspirados neles mesmos. Felizmente são poucos. É complicado reproduzir aqui neste artigo, o que minha consciência mastigou e deglutiu nesses dias que me refiro neste artigo. Dias de profundo enriquecimento espiritual. É justamente nesses períodos onde encontro a melhor face de Deus, a olhar-me carinhosamente e me mostrar veredas e estradas imensas. Ele parece querer dizer-me que há horas para se andar nas veredas e outras para se andar nas vastas estradas do mundo. Concordo.
Ouço Noturno, de Chopin, esse outro deus que conheci ainda criança. Noturno tem o poder de transportar-me para paraísos cada vez mais próximos de Deus. Que bom! Meu amigo, Noturno, revelando as coisas boas que a vida me mostra sobre ela mesma e sobre a morte. Chopin é mesmo genial.
Preparo-me para mais alguns poucos anos de vida, mas me esperanço em tê-los em muita sobra, em real abundância. Limitado, após dois infartos do miocárdio e com apenas onze por cento da função cardíaca a manter-me vivo, não posso pular nos salões enfeitados dos carnavais da vida, mas posso transformar-me em um Pierrô pensante. A Colombina se afastou, a vida tornou-se menos movimentada com o fisicamente admirável, mas o espírito está sempre em exaltação nas procuras mais essenciais a um homem comum que encontrou o significado da vida e da morte e que se encontra pronto para partir, apesar de não querê-lo. Quem quer?
É preciso que se construa uma fé admirável e uma obra consistente. A primeira, tenho a certeza que encontrei. A segunda, dirão ou não de mim, sobre mim, os que me sucederem. Tentei ser bom. Como sempre disse, poderia ter nascido velhinho para morrer criança, nos braços de minha mãe. Mas, com o tempo aprendi que a vida é perfeita. Tanto que nos deu a morte, como ponte, para passarmos para outra dimensão. Já pensaram se vivêssemos eternamente velhos e envelhecidos? Que horror seria a vida.
Pois bem. O carnaval me deu carnavais dentro de um silêncio fabuloso. A única música que me dispus a ouvir foi Noturno. As outras me impuseram goela abaixo, nos pequeninos instantes que saí à farmácia ou à padaria para comprar o absolutamente necessário.
E hoje à tarde, quando voltar para detrás do birô de médico e fazedor de amigos, deverei pôr em prática o que aprendi com Deus e meu silêncio. Ainda saio dele com o poder do perdão, rarefeito. Tentei passar uma esponja em algumas coisas que persistiram em ficar. Tem nada não. Haverá outro silêncio mais forte e apagarei o resto que não consegui desta vez. Ficaria sem graça resolver tudo em apenas quatro dias. A vida é dinâmica demais para estabelecermos uma semana para sanar nossas faltas.
Findo por aqui. O salão está vazio. Há um enorme silêncio na rua à frente do quinto andar do prédio onde moro. O dia já clareou. Um vento frio me traz Deus e me pede para sair dessa cena e entrar em outra. Há muitos seres pobres e miseráveis esperando por mim, por meus cuidados profissionais, e, mais do que isso, pelo meu amor, enquanto ser humano que se prontificou a doar-se aos doentes, sem olhar sexo ou condição social, a ver o tamanho desigual que possui cada sofrimento especial. Quatrocentos quilômetros me separam do ambulatório.
Enfim, valeu a pena ser esse Pierrô diferente que se debruçou sobre as coisas que preenchem a vida e a morte. Agora é ir. Espero ter inúmeros Carnavais. Quem sabe ainda não irei visitar Papai Noel na lapônia? Tomara, Deus meu. És misericordioso demais para me presentear com coisas maravilhosas.
Paulino Vergetti Neto